Quem gosta de passar o tempo olhando
mapas já deve ter percebido que, de todas as divisões geopolíticas do mundo, a
do continente africano é a mais cheia de traçados retilíneos. Esses cortes, tão
precisos e geométricos, são absolutamente inadequados para se separar povos e
nações, uma vez que desconsideram completamente questões de relevo, solo, clima
e, acima de tudo, distribuição demográfica. Só são assim porque, em meio às
revoluções industriais que fizeram nascer o novo mundo, o europeu conquistou e
subjugou o continente africano ao seu desejo e às vontades de suas máquinas
vorazes, sem levar em conta quem lá estava desde tempos imemoriais. Com suas
canetas e esquadros, fizeram cicatrizes doloridas não só nos mapas, mas também em
milhões de pessoas. Dentre os vários grupos afetados por tal abjeto
esquadrinhamento, destacaremos aqui o povo tuareg, etnia nômade bébere natural
do Saara Ocidental.
Após o
processo de independência e demarcação final das fronteiras africanas tal qual
as conhecemos hoje, o território ocupado pelas andanças dos tuaregs foi
dividido em sete países: Níger, Mali, Burkina Faso, Argélia, Líbia, Marrocos e
Tunísia. Como era de se esperar, essa divisão arbitrária foi semente de muitos
conflitos entre os tuaregs e os Estados que assumiram os governos nestes
países, seja por imposições legais, seja por perseguição religiosa, seja por
violências étnicas variadas. E é justamente neste cenário tenso, temperado por
abusos de poder, revoluções e violência que músicos tuaregs encontram força e
criatividade para criar e compor melodias de cair o queixo.
Fundado em
1979 por tuaregs de Mali sediados na Argélia, o Tinariwen (no idioma tamasheq, ⵜⵉⵏⴰⵔⵉⵓⴻⵏ,
ou
“desertos”) é o que pode se chamar de um conjunto de verdadeiros rebeldes
musicais. Isso porque, além dos temas densos e políticos nas letras do grupo,
os seus membros realmente foram rebeldes: entre 1980 e 1985, os músicos se
mudaram para a Líbia para receber treinamento armado de Gaddafi, e lá conheceram
outros instrumentistas que se juntaram ao grupo. Dali em diante, percorreram o
Saara tocando de graça para quem lhes desse uma fita cassete para gravar seu
som. Agressiva, subversiva e resistente, a música do Tinariwen se espalhou
organicamente pela região, mas demorou a se projetar para o resto do mundo. E
ainda demoraria mais um tanto, pois não era o deserto o único responsável pela
precariedade de condições: em 1990, integrantes da banda se mudaram de volta
para Mali, onde pegaram em armas contra o governo. Somente em 1992 eles
finalmente puderam se dedicar em tempo integral à música.
O som do
Tinariwen se enquadra num estilo muito próprio e original, que hoje é chamado
de Tishoumaren. A gama de influências é imensa, mas há de se destacar fortes
traços do rock americano setentista, do blues e da música Raï, ritmo que se popularizou na Argélia durante a década de 30,
mas que ganhou ares pop nos anos 80. O primeiro disco do grupo, The Radio Tisdas Sessions, só foi ser
lançado em 2001, mas já foi suficiente para render reconhecimento internacional
ao grupo tuareg.
Em 2014,
dois anos após receber o primeiro Grammy pelo álbum Tassilli e fugir de mais uma revolta no Mali, a banda retornou ao estúdio para conceber Emmaar (algo como “o calor da brisa”), uma pérola musical da mais
alta estirpe. O álbum, cantado todo em tamasheq, é uma pedrada do começo ao
fim. As guitarras distorcidas se confundem com percussões bem demarcadas e vocalizações
em coro que são quase transcendentais de tão intensas.
Toumast
Tincha, a faixa de abertura, já dita o tom dos próximos 50 minutos para o
ouvinte: lamentos da secura do Saara, e timbres tão hipnóticos quanto o
quentume das areias do deserto. O álbum se destaca por não perder em momento
nenhum a intensidade, sem que isso entretanto se torne repetitivo para os
nossos ouvidos ocidentais. Outras músicas merecem destaque especial, embora
todas tenham seu brilho único: Arhegh
Danagh, a terceira faixa, envolve o ouvinte com riffs potentes e bem
temperados em ritmo Raï. Tahalamot, por sua vez, prende a atenção
pela base de blues combinada com progressões arábicas bem sólidas e percussão
muito bem amplificada e marcada. Imidiwanin
Ahi Tifhamam tem um quê de rock das antigas, e surpreende a cada solo e
refrão. Aghregh Medin, a faixa de
encerramento, aposta na simplicidade de um som mais limpo e agudo, e é
absolutamente tocante.
Emmaar é pérola, para ser ouvida e
reouvida diversas vezes. E para sentir a cada toque nas cordas o poder de
música realmente revolucionária. Atualmente o Tinariwen continua a rondar o
mundo, nômade, como é desde suas raízes imemoriais. E, em cada ponto que param
para tocar, continuam sua luta infindável pela liberdade de poder se expressar
com música em qualquer lugar do mundo.
Faixas:
1. Toumast
Tincha
2.
Chaghaybou
3. Arhegh
Danagh
4. Timadrit In Sahara
5. Imidiwan Ahi Sigdim
6. Tahalamot
7. Sendad Eghlalan
8. Indiwanin ahi Tifhamam
9. Koud Edhaz Emin
10. Emajer
11. Aghregh
Medin
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