terça-feira, 23 de agosto de 2016

The Cat Empire – Two Shoes (2005)


Há anos, ouvi de um amigo meu que a água que os músicos australianos estão bebendo está batizada. Ele, na ocasião, se referia especificamente ao Tame Impala e ao Hiatus Kaiyote (grupo sobre o qual pretendo escrever aqui num futuro não muito distante). É vero, mas creio que dê para dizer que essa frente de gente criativa vinda da terra dos cangurus é ainda mais ampla do que se imagina.
The Cat Empire é um conjunto que já tem algum tempo de estrada. Formado em 1999 em Melbourne, a banda começou como um conjunto de jazz associado ao Jazz Cat de Steve Sedergen e evoluiu aos poucos seu som ao mesclá-lo com ritmos caribenhos (ska, reggae, calipso, salsa), Black Music (soul, blues, funk, rap) e uma boa pitada de rock. O resultado, além de assaz caliente, é dançante tanto para fãs de uma latinidade boa quanto para adoradores de um bom bate-cabeça.
O segundo álbum do conjunto australiano, Two Shoes, já traz em si uma pimenta extra por ter sido gravado no estúdio EGREM, em Havana, onde músicos importantes de Cuba já eternizaram suas boas notas. O disco abre com um naipe de metais pesadíssimo em Sly, grande cartão de visitas do som da banda: cool, sexy e envolvente. Os solos de sopros da canção que o digam. Na sequência, In My Pocket, uma espécie de chillout com entradas de ska, aparece para tirar o ouvinte dos eixos. É, facilmente, uma das melhores do álbum. Lullaby quebra um pouco o ritmo, enquanto Car Song induz ao mosh-pit. Two Shoes, faixa título do álbum, é uma balada envolvente e em compasso mais lento, mas muito bem temperada com um quê mariachi digno do Walker, de Joe Strummer. Ainda merecem destaque especial Sol Y Sombra, uma homenagem poderosa ao Buena Vista Social Club, Party Started, o melhor flerte com o hip-hop do grupo, e a faixa oculta 1001, melô meio-surfista, meio-country, que vem escondido depois de Night That Never End.
Cat Empire é um conjunto divertido, de fácil audição. É de encher os ouvidos, e não cansa. Bom para ouvir indo para a praia.
Faixas:
1. Sly
2. In My Pocket
3. Lullaby
4. The Car Song
5. Two Shoes
6. Miserere
7. Sol Y Sombra
8. Party Started
9. Protons, Neutrons, Electrons
10. Saltwater
11. The Night That Never End
12. 1001

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segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Tinariwen - Emmaar (2014)



 
Quem gosta de passar o tempo olhando mapas já deve ter percebido que, de todas as divisões geopolíticas do mundo, a do continente africano é a mais cheia de traçados retilíneos. Esses cortes, tão precisos e geométricos, são absolutamente inadequados para se separar povos e nações, uma vez que desconsideram completamente questões de relevo, solo, clima e, acima de tudo, distribuição demográfica. Só são assim porque, em meio às revoluções industriais que fizeram nascer o novo mundo, o europeu conquistou e subjugou o continente africano ao seu desejo e às vontades de suas máquinas vorazes, sem levar em conta quem lá estava desde tempos imemoriais. Com suas canetas e esquadros, fizeram cicatrizes doloridas não só nos mapas, mas também em milhões de pessoas. Dentre os vários grupos afetados por tal abjeto esquadrinhamento, destacaremos aqui o povo tuareg, etnia nômade bébere natural do Saara Ocidental.
Após o processo de independência e demarcação final das fronteiras africanas tal qual as conhecemos hoje, o território ocupado pelas andanças dos tuaregs foi dividido em sete países: Níger, Mali, Burkina Faso, Argélia, Líbia, Marrocos e Tunísia. Como era de se esperar, essa divisão arbitrária foi semente de muitos conflitos entre os tuaregs e os Estados que assumiram os governos nestes países, seja por imposições legais, seja por perseguição religiosa, seja por violências étnicas variadas. E é justamente neste cenário tenso, temperado por abusos de poder, revoluções e violência que músicos tuaregs encontram força e criatividade para criar e compor melodias de cair o queixo.
Fundado em 1979 por tuaregs de Mali sediados na Argélia, o Tinariwen (no idioma tamasheq, ⵜⵉⵏⴰⵔⵉⵓⴻ, ou “desertos”) é o que pode se chamar de um conjunto de verdadeiros rebeldes musicais. Isso porque, além dos temas densos e políticos nas letras do grupo, os seus membros realmente foram rebeldes: entre 1980 e 1985, os músicos se mudaram para a Líbia para receber treinamento armado de Gaddafi, e lá conheceram outros instrumentistas que se juntaram ao grupo. Dali em diante, percorreram o Saara tocando de graça para quem lhes desse uma fita cassete para gravar seu som. Agressiva, subversiva e resistente, a música do Tinariwen se espalhou organicamente pela região, mas demorou a se projetar para o resto do mundo. E ainda demoraria mais um tanto, pois não era o deserto o único responsável pela precariedade de condições: em 1990, integrantes da banda se mudaram de volta para Mali, onde pegaram em armas contra o governo. Somente em 1992 eles finalmente puderam se dedicar em tempo integral à música.
O som do Tinariwen se enquadra num estilo muito próprio e original, que hoje é chamado de Tishoumaren. A gama de influências é imensa, mas há de se destacar fortes traços do rock americano setentista, do blues e da música Raï, ritmo que se popularizou na Argélia durante a década de 30, mas que ganhou ares pop nos anos 80. O primeiro disco do grupo, The Radio Tisdas Sessions, só foi ser lançado em 2001, mas já foi suficiente para render reconhecimento internacional ao grupo tuareg.
Em 2014, dois anos após receber o primeiro Grammy pelo álbum Tassilli e fugir de mais uma revolta no Mali, a banda retornou ao estúdio para conceber Emmaar (algo como “o calor da brisa”), uma pérola musical da mais alta estirpe. O álbum, cantado todo em tamasheq, é uma pedrada do começo ao fim. As guitarras distorcidas se confundem com percussões bem demarcadas e vocalizações em coro que são quase transcendentais de tão intensas.
 Toumast Tincha, a faixa de abertura, já dita o tom dos próximos 50 minutos para o ouvinte: lamentos da secura do Saara, e timbres tão hipnóticos quanto o quentume das areias do deserto. O álbum se destaca por não perder em momento nenhum a intensidade, sem que isso entretanto se torne repetitivo para os nossos ouvidos ocidentais. Outras músicas merecem destaque especial, embora todas tenham seu brilho único: Arhegh Danagh, a terceira faixa, envolve o ouvinte com riffs potentes e bem temperados em ritmo Raï. Tahalamot, por sua vez, prende a atenção pela base de blues combinada com progressões arábicas bem sólidas e percussão muito bem amplificada e marcada. Imidiwanin Ahi Tifhamam tem um quê de rock das antigas, e surpreende a cada solo e refrão. Aghregh Medin, a faixa de encerramento, aposta na simplicidade de um som mais limpo e agudo, e é absolutamente tocante.
Emmaar é pérola, para ser ouvida e reouvida diversas vezes. E para sentir a cada toque nas cordas o poder de música realmente revolucionária. Atualmente o Tinariwen continua a rondar o mundo, nômade, como é desde suas raízes imemoriais. E, em cada ponto que param para tocar, continuam sua luta infindável pela liberdade de poder se expressar com música em qualquer lugar do mundo.
Faixas:
1. Toumast Tincha
2. Chaghaybou
3. Arhegh Danagh
4. Timadrit In Sahara
5. Imidiwan Ahi Sigdim
6. Tahalamot
7. Sendad Eghlalan
8. Indiwanin ahi Tifhamam
9. Koud Edhaz Emin
10. Emajer

11. Aghregh Medin

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